A Reintegração Social dos Ex-Combatentes da FEB – Parte V
Continuação do trabalho de pesquisa do Mestre em História Alessandro dos Santos Rosa.
CONTINUACAO
1.1.1 A seleção: apadrinhamentos
O processo para selecionar aqueles que comporiam o efetivo febiano se tornou um momento de favorecimento. Aqueles militares que eram de carreira procuravam meios de não fazer parte da Força Expedicionária. Porém, no retorno triunfal dos expedicionários, os militares que aqui permaneceram, inclusive aqueles que se apadrinharam para não ir, tratavam os ex-combatentes com rancor, inveja e despeito. Sendo assim, dentro dos próprios quartéis houve uma exclusão, algo que provavelmente era desejado pelo próprio governo. A problemática social não ficou restrita somente àqueles que voltaram à vida civil, mas também dentro das Forças Armadas.
A seleção foi outro fator que dificultou muito a formação da Força Expedicionária Brasileira, pois mais de um ano após a decisão de efetivar apoio militar aos países aliados, não se tinha organizado um regimento de infantaria. O que teria imposto o atraso seria, principalmente, o desconhecimento dos resultados das inspeções de saúde e de seleção de seus homens. Portanto, a falta de preparo não estava só no meio político-militar, mas também em áreas técnicas, como a da saúde.
Pela própria inexperiência faltavam padrões para uma seleção eficiente, como analisado por Floriano de Lima Brayner[1]: “As juntas de Inspeção de saúde não tinham critérios uniformes. Não estavam mesmo adestradas para tal atividade, nem dispunham de material especializado, além de empregarem processos burocráticos arcaicos e de parco rendimento”.
Os exames médicos eram todos centralizados no Rio de Janeiro, com o principal objetivo de não haver “facilidades”, para que todos tivessem um tratamento nivelado e igual, não existindo distinção de classe social, status ou, ainda, qualquer tipo de contato com pessoas influentes, situações que poderiam trazer algum tipo de benefícios.
Dessa maneira, ficou comprometida a qualidade de saúde dos expedicionários, sendo que alguns desses componentes desembarcaram em Nápoles e passaram a apresentar problemas básicos de saúde como, por exemplo, dor de dente, conforme explica o ex-expedicionário, reformado, Sr. Eronides João da Cruz[2]:
Olha vou até usar uma linguagem meio fora de uso, “foi feito nas coxas”, porque naquele tempo não se tinha material, nós não tínhamos nada. Porque as nossas técnicas eram vindas ainda da Primeira Guerra Mundial. Utilizava-se a doutrina francesa no exército. Não havia critérios para selecionar quem comporia a FEB, basta ver a quantidade de analfabetos que saíram das lavouras, do interior e compuseram o efetivo. Ai aconteceu que foram para a Itália, para a guerra pessoas que necessitavam até mesmo de cuidados básicos, foram despreparados para enfrentar o melhor soldado do mundo, porque queiram ou não, os alemães eram os melhores soldados do mundo.
As dificuldades da seleção foram tão profundas que houve inúmeros casos de militares que chegaram a Nápoles já sem condições de combater. Torna-se perceptível que não houve uma rigidez no momento de se escolher quem realmente teria condições de ir para uma linha de combate, ou ainda, faltaram meios mais eficientes, conforme mostra a explicação do depoimento acima, confirmando as abordagens realizadas pelos pesquisadores Francisco César Alves Ferraz e Sirlei de Fátima Nass.
Grande parte do efetivo que compôs a FEB era totalmente desconhecedora do ofício que desempenhava o militar. A grande massa que se somaria o efetivo dos expedicionários era de poucas condições financeiras, trabalhavam em pequenas propriedades de terra praticamente para a subsistência, conforme analisado pelo senhor Eronides João da Cruz[3]. Eles eram mais conhecidos como “colonos”. Além disso, com uma grande parcela do efetivo dos expedicionários analfabeta, como adaptarem-se aos treinamentos ministrados em inglês, na Itália, por militares instrutores norte-americanos?
Dessa parcela de jovens que passaram a compor o efetivo expedicionário, parte eram voluntários e os outros seguiam o que estava previsto na Lei do Serviço Militar, de 1939. Onde estava preconizado que o “tributo de sangue” era um ato de cidadania a que estavam sujeitos os jovens brasileiros. A prestação do serviço militar era uma das obrigações que condicionava aos direitos políticos e civis da população masculina adulta. Porém não havia um nivelamento nesse cumprimento do dever, pois aqueles que eram de famílias mais abastadas, acabavam utilizando de artifícios para realizar suas fugas desse compromisso com a pátria, ocorrendo que a grande maioria atingida por esse ato de cidadania, eram os pobres e analfabetos.
Enquanto essa massa era recrutada, aqueles que seguiam carreira e seriam os mais indicados e habilitados para enfrentar uma situação dessa natureza acabaram não participando desse episódio. Isso ocorreu porque há indícios de que militares da ativa recorreram a conhecidos políticos para não compor o efetivo febiano e combater em solo italiano[4]. Buscaram pessoas influentes que pudessem apadrinhá-los, de forma que pudessem ser dispensados de combater na guerra. Outro problema era referente aqueles que não queriam ir para o Teatro de Operações[5]. Essa situação acabou ocorrendo com grande incidência dentro da caserna.
Até mesmo doenças, diagnósticos e outros mecanismos eram inventados, forjados para que determinado militar não participasse, como analisado por Demócrito Cavalcante de Arruda[6]:
Essa dança de oficiais no comando, às vésperas do embarque, verificou-se, em pelo menos cinco companhias de fuzileiros das nove existentes no regimento, por motivo de doenças, de cirurgias de última hora. Desses substituídos, só um, baixado por pneumonia, apareceu depois na Itália.
Dentro do exército, a considerar postos (oficiais) e graduações (praças[7]), era entre o oficialato que se encontravam os maiores beneficiários, pois esses contavam com maior prestígio e, também, tinham relacionamentos sociais com pessoas mais influentes. As respectivas características vão promover, entre esses beneficiários, possibilidades para que realizassem suas fugas das unidades expedicionárias.
O depoimento do General da reserva, Ítalo Conti, reforça essas informações sobre falsas doenças[8]: “Teve muito caso, houve gente que pegou doença venérea, pra ser licenciado na hora da inspeção de saúde, outros que inventaram doença, mas foram casos esporádicos, na minha unidade não me lembro de isso ter acontecido”.
As possibilidades de haver esse tipo de ocorrência eram maiores por parte daqueles que possuíam um amparo financeiro elevado, como afirmado pela ex-integrante da Força Expedicionária Brasileira, a enfermeira Virginia Leite[9]:
Olha, era só ter dinheiro que ele sempre valeu né. Comentavam, eu nunca presenciei, mas se eu presenciasse eu reclamaria, se eu mulher estava pronta para servir o Brasil, por que o soldado tinha que ficar aqui? Aconteceu muito disso, não tenho dúvida, os “filhinho de papai”, claro que não de um modo geral, acabavam se valendo de influências e poder aquisitivo. Tinha o bom elemento e o mau elemento.
Essas análises acima, nos remetem a uma compreensão de que realmente houve a procura por padrinhos, ocorrendo que, um grande número de militares da ativa, que estavam preparados, devido aos constantes treinamentos, se beneficiaram dessas possibilidades para não compor o efetivo de expedicionários. Essas informações confirmam aspectos abordados em pesquisas já realizadas, porém trazem relatos inéditos, vivenciados por componentes do efetivo expedicionário
Daqueles que foram às ruas, ou seja, a população urbana, que havia solicitado e conclamado que o Brasil compusesse uma tropa expedicionária, poucos foram os voluntários, como explicado pelo ex-combatente reformado Eronides João da Cruz[10]:
Bom, acontece o seguinte, quem solicitou que o Brasil participasse da guerra, quem foi as ruas pedir e gritar, esses foram os primeiros a não se voluntariar, nem 10% destes foram, são os falsos patriotas. Muitos fingiam doenças e outras desculpas, tudo para não ir, comprando autoridades pra dar certificado falso pra não ir pra guerra. Procurando padrinhos.
Valendo-se dos depoimentos e afirmações, pode-se concluir que a grande massa, a maioria dos expedicionários, tinha origens campesinas. Essas pessoas têm como características mobilizarem-se mais em prol do outro, apresentam um sentimento de solidariedade mais aflorado, devido ao sistema em que estão inseridos. Esses valores são mais arraigados e cultuados em pessoas interioranas. Já as pessoas citadinas, com costumes mais individuais, não tinham esse sentimento de dever. Essas fizeram agitações, mobilizados por articuladores que tinham outros interesses. Porém, no momento em que foram solicitados para participar do efetivo expedicionário, poucos foram os voluntários.
Pode-se afirmar, ainda, com base no depoimento acima, que houve a ocorrência das facilidades para serem realizadas fugas, por parte dos militares profissionais, para que não permanecessem nas unidades expedicionárias e, assim, não compondo o corpo da Força Expedicionária que partiria para a guerra. Ainda, abordando sobre questões de facilidades, uma das práticas que ocorriam com frequência, eram os subornos, a compra do “passe” para livrar-se da possibilidade de integrar o efetivo de expedicionários, conforme analisa Demócrito Cavalcante de Arruda[11]:
Sabemos que a centralização burocrática não impediu os casos de suborno, numerosos por sinal, nesses exames de seleção, a ponto de chegar ao absurdo de só terem permanecido nas fileiras os desprotegidos, os humildes e abnegados, evadindo-se para os cursos de última hora do C.P.O.R., os filhos da chamada classe média, ou de volta à vida civil, através de arranjadas incapacidades ou por motivos os mais inconsistentes.
O procedimento de centralização, utilizado estrategicamente para que diminuísse a possibilidade de suborno, acabou, na realidade, só dificultando a chegada dos voluntários aos locais que ocorriam as inspeções. Acredita-se, assim, que quem tinha condições e interesse acabou burlando o sistema, não compondo as fileiras que marcharam para os navios e partiram rumo à Itália, no continente europeu.
Porém, essas medidas tomadas, acabaram dificultando o deslocamento daqueles que eram voluntários, pois saindo das mais remotas regiões, tinham que se deslocar por seus próprios meios para apresentarem-se as unidades expedicionárias. Muitos chegavam com grandes dificuldades e nem sabiam se seriam “aproveitados” ou não, se estariam aptos. O que motivava o voluntariado, em sua grande maioria de regiões interioranas foi, em alguns casos, o patriotismo; outros, para aventurarem-se em algo diferente; e, ainda, havia aqueles que nem sabiam o que estavam fazendo ali.
BIBLIOGRAFIA
BRAYNER, Floriano de Lima. A verdade sobre a FEB: memórias de um chefe do estado-maior na campanha da Itália. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.
CASTELO BRANCO, Manuel Thomaz. O Brasil na II Grande Guerra. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército Editora, 1960. p. 139-140.
Demócrito Cavalcante de Arruda. Depoimentos de Oficiais da Reserva sobre a FEB. São Paulo: IPÊ – Instituto Progresso Editorial S.A., 1950.
FERRAZ, F. C. A. O Brasil na guerra: um estudo de memória escolar. Comunicação apresentada no IV Encontro Perspectiva do Ensino de História. Ouro Preto. Universidade Federal de Ouro Preto, 24 de abril de 2001. Anais da ANPOC.
MORAES. J. B. M. de. A FEB pelo seu comandante. São Paulo: Instituto Progresso Editorial, 1947.
NASS, Sirlei de Fátima. Legião Paranaense do Expedicionário: indagações sobre a reintegração social dos febianos paranaenses (1943-1951). Dissertação – UFPR, 2005.
OLIVEIRA, Dennison de. Os soldados alemães de Vargas. Curitiba: Juruá, 2008.
RIBEIRO, P. da S. As batalhas da memória: uma história da memória dos ex-combatentes brasileiros. Niterói, 1999. Dissertação (Mestrado em História): Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal Fluminense.
SALUM, A. O. Zé Carioca vai à Guerra. São Paulo, 1996. Dissertação (Mestrado em História) Pontifícia Universidade Católica.
SILVEIRA, Joaquim Xavier da. A FEB por um soldado. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 2001.
[1] BRAYNER, Floriano de Lima. A verdade sobre a FEB: memórias de um chefe do estado-maior na campanha da Itália. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. p. 31.
[2] Eronides João da Cruz. Ex-combatente da Força Expedicionária Brasileira. Entrevista realizada no dia 09 de novembro de 2009 na cidade de Curitiba – PR. O senhor Eronides participou da campanha da Segunda Guerra Mundial como soldado de manutenção de aeronaves do 1o Grupo de Aviação de Caça da Força Aérea Brasileira. Tinha como seu chefe superior imediato o 1º Tenente Prado. Não participou efetivamente dos combates. Sua função acabava restringindo-o a oficinas de manutenção de aeronaves. Porém, viveu dentro do contexto da guerra e sofreu os mesmos problemas para ser reinserido em meio à sociedade. O referido ex-combatente é natural de Aracaju – SE, conta com 88 anos.
[3] Eronides João da Cruz. Entrevista realizada no dia 09 de novembro de 2009.
[4] FERRAZ, Francisco César Alves. A guerra que não acabou… op. cit. p. 82-86.
[5] CASTELO BRANCO, Manuel Thomaz. O Brasil na II Grande Guerra. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército Editora, 1960. p. 139-140.
[6] Demócrito Cavalcante de Arruda. Depoimentos de Oficiais da Reserva sobre a FEB. São Paulo: IPÊ – Instituto Progresso Editorial S.A., 1950. p. 42.
[7] Compõe o grupo de praças todo militar que estiver com graduação de Subtenente, Sargento, Cabo ou Soldado.
[8] Ítalo Conti. Entrevista realizada no dia 12 de novembro de 2009.
[9] Virginia Leite. Entrevista realizada no dia 09 de novembro de 2009.
[10] Eronides João da Cruz. Entrevista realizada no dia 09 de novembro de 2009.
[11] Depoimentos de Oficiais da Reserva sobre a FEB… op. cit. p. 41.